Como a democratização e o fortalecimento de práticas comunicacionais comunitárias podem contribuir para a criação de uma esfera pública nacional.
Por Janine Bargas*
A multiculturalidade brasileira foi oficializada com a promulgação de sua Constituição Cidadã, em 1988. Em 2007, com a assinatura do Decreto 6040, o Estado brasileiro instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, definindo esses povos como culturalmente diferenciados e dotados de formas próprias de organização social. Com as normas, o país passou a distinguir formalmente a existência desses grupos sociais, garantindo a eles, além dos direitos universais de todo o brasileiro, direitos específicos, como o reconhecimento étnico e territorial.
Ao mesmo tempo, ao tomar a comunicação como um direito universal, o país se voltou a um caminho onde a democracia teria espaço para se consolidar a passos largos, podendo atingir a todos, com a constituição de uma arena cívica. Mas, na contra-mão dessa tendência, observamos o encurtamento do caminho democrático para os grupos culturalmente diferenciados e outras populações rurais, que se deu e se dá, entre outros fatores, pela concentração dos meios de produção da comunicação e pela ineficácia e inacessibilidade de leis que regem, por exemplo a radiodifusão comunitária.
De acordo com a Associação Mundial de Rádios Comunitárias no Brasil (AMARC-Brasil) as incongruências quanto à garantia do direito humano à comunicação dessas comunidades residem, primordialmente, na ineficácia das normas legais. A Lei 9.612/98, que versa sobre a Radiodifusão Comunitária, não contempla as especificidades tanto étnicas, quando identitárias e as diversidades regionais. Na Amazônia, região onde as dimensões se colocam como imperativas, a potência permitida por essa lei, de 25 watts, impossibilita, por exemplo, que se instaurem processos comunicativos produzidos pelo povos tradicionais e camponeses, de acordo com os seus interesses e necessidades específicos. Além disso, a morosidade na tramitação de processos de concessão e outorga de emissoras comunitárias acaba desmobilizando as iniciativas.
Imersas nesse quadro, lideranças de vários movimentos sociais e produtores de conteúdo em rádios e TVs comunitárias da Amazônia e de outros estados brasileiros estiveram reunidos em Belém na última semana, no Seminário “Rádios Comunitárias para todos os povos”. A ideia foi discutir, a partir de distintas experiências, as possibilidades de construção de rumos comunicativos mais democráticos e a importância da comunicação como uma estratégia de politização e adensamento de suas lutas.
Entre as principais pautas do encontro estavam a incipiência de ferramentas comunicativas para alguns povos, como as rádios comunitárias, entre eles os indígenas e os quilombolas. Alan Tembé, presidente da Associação dos Indígenas Tembé de Santa Maria do Pará, destaca a existência de apenas uma rádio na aldeia Canindé, na Terra Indígena do Alto Turiaçu, no Pará, que é utilizada apenas como forma de comunicação entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a comunidade, para pequenos informes. “Informações como o do processo seletivo para povos indígenas da UFPA só chegam atrasadas, diz Alan, que é estudante de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). “A mídia só noticia quando ocupamos uma área ou fazemos protestos. Nós temos falta de escola, na saúde do povo, mas as autoridades e a sociedade não estão sabendo disso. Então, há a necessidade de criação de uma rádio comunitária em nossa comunidade” exemplifica e destaca a liderança indígena. Segundo dados do Censo do IBGE (2010), a população indígena residente no território nacional é de 896 mil pessoas. A maior parte, 63%, reside em áreas rurais da Região Norte, onde a garantia de outros direitos sociais, como saúde e educação, se mostram aquém das necessidades regionais.
Guinê Ribeiro, articulador da Rede Mocambos, que congrega movimento negro de comunidades afrorreligiosas e de quilombolas, aponta que, na Amazônia, só existem quatro experiências de rádios comunitárias: três em quilombos e uma em terreiro. Para Guinê, “estamos em um tempo de circulação rápida de informações. Mas para nós, a informação chega de forma mais lenta. A verdade nos libertará e a liberdade é ter acesso a comunicação. Então, devemos conhecer e ter acesso às verdades” e para isso, segundo ele, é fundamental a garantia de acesso às ferramentas de comunicação, que vão desde as rádios, passando pelas TVs, até a Internet”.
Dessa forma, tanto no espectro eletromagnético, quanto na garantia de outros direitos, percebe-se a falta de espaço dos povos e comunidades tradicionais e camponesas, com o estabelecimento de uma distância entre o que está determinado formalmente nos textos legais brasileiros e o que está garantido, em termos de direitos sociais vitais, por exemplo, como a demarcação territorial de comunidades quilombolas. Só no estado do Pará, das 420 comunidades quilombolas existentes, 118 são contempladas com a titulação territorial, totalizando 57 títulos emitidos, já que um título pode abranger mais de uma comunidade. E, em todo o país, de acordo com a Fundação Cultural Palmares, responsável pela certificação de comunidades remanescentes de quilombos, e com dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela titulação em terras federais, das 1.342 certificadas, somente 193 delas (pouco mais de 5% do total) têm suas terras tituladas.
A situação é ainda mais grave, quando consideramos que, para quilombolas e para outras populações, os conflitos são iminentes ou já existentes. Com eles também persistem as ameaças não somente a sua força política, mas também as suas formas de ser e viver enquanto tais.
Perspectivas e caminhos democráticos
Uma das experiências de comunicação comunitária é feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que, atualmente, aposta na formação de lideranças e no fortalecimento de seus processos comunicativos. Há mais de 30 anos o MST já desenvolvia um jornal impresso, hoje, existem mais de 30 rádios comunitárias em assentamentos por todo o país. “A experiência do MST começou a ser gestada em 1981, no Rio Grande do Sul. Foi também o ponto inicial de experiência de comunicação. As famílias criaram um boletim informativo (…) O jornal dava unidade política ao movimento. (…) Na década de 90 criamos a revista Sem Terra e fizemos a produção de um CD com áudio para as rádios comunitárias. Em 2000, procuramos formalizar a capacitação em comunicação, para a formação não só no campo técnico, mas no debate político”, relembra Antônio Caros Luz, do MST no Ceará, que também participou do seminário em Belém.
Para a AMARC Brasil, as dinâmicas sociais e comunicacionais estão acontecendo em ritmo frenético, enquanto as discussões sobre a radiodifusão comunitária caminham a passos lentos. O representante nacional da Associação Mundial de Rádios Comunitárias, Arthur William, ressalta alguns pontos controversos sobre esse contexto: “A lei define o que é uma rádio de baixa potência, que pode ou não ser comunitária. A AMARC entende que esta não é uma lei de rádios comunitárias e sim uma lei de rádios de baixa potência. Deve haver uma norma que garanta o exercício da comunicação comunitária, porque o que se tem é o problema da licença, da criminalização das rádios, e o da manutenção financeira”, destaca.
Nesse cenário adverso, o fortalecimento da comunicação como uma estratégia política e como via de criação de uma esfera pública se coloca urgente aos movimentos sociais. A necessidade de visibilização dos seus temas no debate social e a construção de espaços plurais devem vir, portanto, coadunar com a Carta Magna, colaborando para a construção democrática nacional, se colocando, ainda, como forma de superação das demais iniquidades sociais presentes nas várias realidades de grupos tradicionais e camponeses. Assim, apontam os movimentos sociais, é preciso estar atento às pluralidades, para, com elas, ser possível pensar em possibilidades comunicacionais e políticas públicas mais justas e democráticas, apontando ao Estado esses e outros caminhos a seguir.
* Janine Bargas é jornalista, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará, com pesquisa sobre a organização política de comunidades quilombolas da Ilha do Marajó, no Pará. É assessora de Comunicação na Coordenação das Associações das Comunidades remanescentes de Quilombos do Pará – MALUNGU.
Mais informações sobre as discussões que aconteceram durante o Seminário “Rádio Comunitária para todos os povos” acesse http://www.amarcbrasil.org